18 de julho de 2009

NADA A VER

Sentada no ônibus, perdida em pensamentos que nada mais causam do que sofrimentos solitários, vi adentrar uma família de negros: pai, mãe, filho e filha. O que mais despertou minha atenção, não foi o estilo diferenciado dos cabelos do menino serelepe que ali estava, mas a tristeza e indiferença da menina, a mais negra entre os seus.

Ao fitá-la, não consegui me desviar do seu olhar, que me trazia à memória as recentes reportagens feitas por emissoras de TV’s de todas as partes do mundo, nas quais era ressaltada a alegria do povo da África do Sul. Não via em seu rosto a mesma expressão, a mesma malemolência, o sorriso, as cores. O que via era a mesma história, as marcas de um tempo recente.

Por sua pouca idade, talvez não conhecesse o aparthaid, nem o olhar dos fotógrafos que registraram imagens ontológicas da condição do povo africano. Do menino gente feito bicho prestes a ter sua vida e sua história devoradas por um abutre. Da mãe esguarnecida a segurar seu filho no colo tendo para oferecê-lo somente a pele de seu seio já seco.

Eu não entendia, muitas vezes, confesso, o porquê da existência dos movimentos negros, achava exagero, resultado da mania de perseguição dos negros, mas não, não é. Certa noite, de pé na fila de um supermercado, mãe e filho começaram um diálogo que chamou minha atenção. O garoto, com aproximadamente 10 anos de idade, comparou um rapaz ao seu professor. Sua mãe prontamente discordou de sua assertiva com a expressão Nada a ver. O garoto logo saltou e disse que nada a ver era aquele homem andando lá no condomínio. Indagado a qual homem se referia respondeu que se tratava do pai de Milinha a menina do apartamento 307.

- Você já viu a cor dele, é preta igual a tua blusa... isso sim não tem nada a ver, minha mãe!! Como um homem daquela cor pode ter casado com uma mulher branca e ter uma filha também branca?

Sua mãe tomada de um misto de vergonha e medo retrucou suas palavras. Mas nada adiantou, nenhuma repreensão, dita por ela naquele instante, abalou a certeza daquela criança. Ininterruptamente, ele repetia: “Aquilo sim é nada a ver, aquilo sim é nada a ver”.Esta frase martelou em minha cabeça por horas e horas até encontrar aquela família no ônibus. Via naquela menina negra, de olhar perdido, a materialização daquela frase. Ela não sabia de tal história, mas certamente já sentia na pele as ideologias preconceituosas que sobreviveram aos muitos projetos e leis contra o racismo.

Em mim restou, depois de tudo isso, a luta para não sentir vergonha de ser negra e as muitas indagações acerca daquela garota. Como pensaria e projetaria a sua vida numa sociedade como a nossa? Teria ela idéia do sofrimento, descaso e desumanidade com que poderia ser tratada nesse nosso país da diversidade? Será que um dia se veria como alguém com possibilidades de ir além do que conseguiram seus avós - passageiros de um navio chamado negreiro?

Talvez eu nunca encontre respostas, nem ela.


8 de julho de 2009


Se me perguntassem o que mais admiro em mim, responderia, sem hesitação: a incrível capacidade de me deixar surpreender pelo outro. É, é essa a expressão. Dia desses, um amigo me revelou que mantém um relacionamento amoroso, a mais de um ano, mas que prefere mantê-lo em segredo. Porquê? Eu o indaguei. "Porque tenho MEDO de assustar as pessoas", foi a sua resposta. O que há de incrível nisso? Poderá me perguntar o leitor. Nada! Se não fosse o simples fato desse amigo apresentar-se sempre muito determinado, com idéias subversivas, atitudes dignas de quem não dispensa a mínima importância para o que os outros pensam. Poderia questionar-lhe tudo isso, mas preferi sorrir e respeitar as suas fraquezas humanamente compreensíveis.